CONFERÊNCIA: Artes e Ensino de Filosofia
João Virgílio Tagliavini
Unicamp, 27 de Agosto de 2004.
A estética como porta de entrada para o ensino de filosofia
A estética, proposta neste trabalho como pórtico para o ensino de filosofia, é a reflexão sobre as diversas formas do belo. O vocábulo grego aisthetiké refere-se a tudo aquilo que pode ser percebido pelos sentidos. Significa experiência, conhecimento sensorial, sensibilidade.
A arte precede as doutrinas, os sistemas e as teorias elaborados sobre ela. A estética supõe a arte, e como parte da filosofia, torna-se realidade apenas no século XVIII. Quem utilizou o termo estética pela primeira vez foi o alemão Alexander Baumgarten (1714-1762) por volta de 1750. Ele o utilizou no sentido de teoria do belo e das suas manifestações através da arte.
Mas, o que é estética? Croce, no início do século XX, define a estética como:
A ciência da arte que... não tem por função, como se pensa em algumas concepções escolares, definir a arte uma vez por todas e tecer sua trama conceitual de forma a cobrir todo o campo dessa ciência; ela é apenas a reorganização permanente, sempre renovada e cada vez mais rigorosa dos problemas aos quais, segundo as diferentes épocas, dá lugar à reflexão sobre a arte, e ela coincide perfeitamente com a solução das dificuldades e dos erros que estimulam e enriquecem o progresso incessante do pensamento.
A história da estética é a da sua busca incessante pela autonomia. A arte parece ter existido em todos os tempos e em todos os lugares, desde as mais remotas eras conhecidas pelo homem. Então, indaga-se por que a estética, como reflexão autônoma sobre a arte, só aparece no século XVIII? Como explicar o seu surgimento tão tardio? É importante observar que uma das causas dessa autonomia tardia pode ser porque econômica e politicamente os artistas só se libertaram das tutelas religiosas, monárquicas e aristocráticas também tardiamente. O próprio artista liberta-se também tardiamente da sua condição de artesão dependente, ora do príncipe, ora do religioso ou mesmo de sua corporação. Por muito tempo o ofício do artista é considerado apenas uma atividade prática, manual, em oposição às atividades intelectuais. É longo o caminho e a luta dos artistas para se libertarem das artes mecânicas para que sua atividade seja reconhecida como arte liberal. Só por volta do século XV é que os artistas, na sua maioria, passam a assinar suas obras. Em compensação conta-se que quando um pincel escapa das mãos de Tiziano, é o imperador Carlos V que se abaixa para pegá-lo. A estética só pode nascer depois de o sujeito, a partir de Descartes, afirmar-se como dono de suas representações, fazendo a passagem da fé para a razão. Na verdade, trata-se de uma nova profissão de fé, a fé na razão. Essa passagem da tutela para a liberdade e do anonimato para o reconhecimento não se dá como por milagre, e nem acontece de forma absoluta. É preciso lembrar que a partir do renascimento, se o artista começa a se libertar dos seus patrocinadores, ele passa a depender do mercado e do marchand, quando o valor de troca, pelo comércio, começa a prevalecer sobre o valor de uso da obra de arte, e a crítica passa a exercer o controle. Estabelece-se, portanto, mais a autonomia da crítica que, por sua vez, realiza-se na dependência das condições materiais dadas historicamente. O cliente passa a exercer o papel que era dos empregadores, pela mediação do marchand . A estética, por sua vez, como reflexão, pode auxiliar o homem na luta pela emancipação em relação às tutelas da teologia, da metafísica e da moral, assim como das tutelas social e política. Pode-se dizer, portanto, que há uma relação dialética em direção à emancipação por parte da arte e da sociedade.
A arte pode ser também “catequese”. O papa Gregório Magno, na segunda metade do século VI, afirmou que a pintura podia servir ao analfabeto tanto quanto a Escritura servia a aqueles que sabiam ler . Portanto as pinturas deveriam apresentar as mensagens bíblicas e teológicas da maneira mais simples e clara possível.
A arte tão condicionada pela magia, pela religião ou pela política, trilha um longo caminho em direção a sua emancipação, assim como a estética faz o mesmo caminho. No século XVI os vínculos que uniam a ciência e a arte num conhecimento homogêneo diminuem. A idéia de autonomia da arte começa a sugerir que ela é também independente da ciência e do saber. Para Jimenez,
várias condições são necessárias para que a estética se imponha como um domínio de reflexão específica. Nenhuma “estética filosófica” poderia ter nascido sem a constituição das idéias de criação autônoma e de sujeito criador. Era preciso também definir as relações entre a razão e a sensibilidade, meditar sobre o gosto, sobre a experiência individual e esforçar-se por determinar o papel da razão no domínio específico da arte, distinto da ciência e da moral. No interior desta esfera estética autônoma, o julgamento do gosto, individual, subjetivo, pode ser exercido livremente sem ter de justificar-se junto a instâncias “superiores”, como a teologia, a metafísica, a ciência ou a ética. Pelo menos, em princípio.
Michelangelo Buonarroti, cognominado “O Divino”, é o primeiro exemplo do artista moderno, solitário, dominado por um impulso próprio que não admite interferências na sua produção artística, nem mesmo de seus contratantes, sejam eles, príncipes ou papas.
A conquista da autonomia da estética que começa a se consolidar no século XVIII, inscreve-se no movimento mais geral de libertação em relação à ordem antiga. O século XVIII é o século da afirmação do indivíduo como sujeito, das declarações e da consciência dos seus direitos. A autonomia plena, real e completa nunca se realizou nem se realizará porque a arte, além de ser um produto datado e, portanto, histórico, acabará sempre “servindo a outros senhores”, como o rei, o cardeal, o revolucionário ou o mercado. E, principalmente, porque a autonomia do sujeito também nunca se realizou. Mesmo assim, a modernidade conhece alguma autonomia que torna possível, inclusive, Art pour l’art. É importante observar que a autonomia da estética caminha junto e reforça também a autonomia de uma reflexão crítica, seja em relação à arte, à sociedade e à política. Estética, ética e política fazem parte da mesma formação filosófica. A educação pela beleza, que permite ultrapassar o estado sensível e subir ao estado estético permite chegar ao estado político, questionando até mesmo a dominação, num impulso para a autonomia do cidadão. A experiência do belo é fundamental por desenvolver a capacidade de relativizar as estruturas e dinâmicas de dominação econômica, social e política. O acesso às obras de arte e à crítica da estética permitem, por exemplo, na sociedade contemporânea o olhar crítico e o questionamento da metástase do mesmo, tanto nas imposições comerciais da cultura mediatizada, quanto na “repetição” das mesmas formas de dominação de micro ou macro poderes. Diante dos horários gratuitos de propaganda política no rádio e na televisão, aquele que teve uma sólida formação estética, pode sentir-se, talvez, o personagem da litografia O Grito de Edvard Munch (1895), que manifesta uma emoção que transforma toda a fisionomia, demonstrando que algo de terrível está acontecendo ou para acontecer.
As obras de arte servem à filosofia por se constituírem, segundo Benjamin, em condensações de experiências passadas capazes de iluminar o futuro se conseguirmos decifrar sua significação simbólica e alegórica .
Para Adorno, a arte somente pode revestir-se de um sentido na negação do mundo presente: é a sua estética negativa. Para ele, Auschwitz demonstra que a cultura ocidental não conseguiu impedir a barbárie, prevenir o inominável. Será possível compor um poema após tamanha decadência do ser humano? Mas, o que resta de bom no ser humano não pode abdicar facilmente diante da barbárie. Nos dias em que escrevo estas linhas, a barbárie age nas ruas do centro de São Paulo, eliminando mendigos, “limpando” as ruas de todo o diferente que as enfeia. Ao pensar na reação de Munch diante da decadência e das misérias humanas, ao dar o seu Grito, mais surpreso ainda fico ao ler no jornal do dia que uma das versões de sua obra O Grito acaba de ser roubada do museu Munch, em Oslo, na Noruega.
A filosofia que não abdica diante da barbárie, faz coro com a arte para combatê-la e, se possível, destruí-la. A filosofia pode exumar as obras de arte e, em especial, a pintura das salas e corredores frios de museus e galerias para torná-las instrumentos de provocação do pensamento crítico sobre o homem e o seu mundo.
De Bruegel a Sêneca: arte e ensino de filosofia
Após uma leitura da história da arte e um estudo sobre alguns artistas, pareceu-nos que a obra de Pieter Bruegel poderia servir como um exemplo do potencial pedagógico da pintura para o ensino e a aprendizagem da filosofia. Algumas obras desse artista dos Países Baixos, do século XVI, levam à reflexão sobre os princípios da filosofia estóica. Para fazer um diálogo com Bruegel, optamos pelos textos de Sêneca, por ser um dos grandes representantes do estoicismo, e pela maior facilidade de acesso à sua obra.
Podemos nos perguntar: qual é a visão correta de uma obra do passado? Somente mergulhando nas propostas do artista e aceitando o seu convite para viver intensamente a sua experiência é que podemos captar os temas que ele provoca. Para conhecê-lo e para que sua obra leve a novos saberes e questionamentos, será necessário, portanto, vivenciar um pouco as relações com seu tempo, seu lugar, enfim, com a sua história. Tal visita à sua obra pode chocar, intrigar, desorientar, irritar e, às vezes, conquistar e deslumbrar. Desse modo, ao compreender suas obras consegue-se transmitir aos outros o conceito de belo a elas inerentes e, pela porta da estética, entrar na filosofia.
Não se sabe exatamente o ano nem o lugar onde Pieter Bruegel nasceu. Situa-se seu nascimento entre 1525 e 1530, num local também incerto, possivelmente Breda. O local do seu nascimento e da sua vida é aquele que era conhecido por Países Baixos dos quais hoje fazem parte Holanda e Bélgica. Até 1550, Bruegel torna-se, provavelmente, aprendiz de Pieter Coeck van Aelst, em Antuérpia, onde, em 1551 é recebido como mestre na Guilda de São Lucas. No ano seguinte faz uma viagem à Itália, passando por Lyon na ida e pelos Alpes Suíços na volta. Essa viagem que durou alguns anos exerceu forte influência em seu trabalho. Em 1556 , Bruegel pinta Os peixes grandes comem os pequenos e O burro na escola. Em 1959 ele pinta O combate do carnaval e da quaresma. É nesse mesmo ano que o rei Felipe II da Espanha, sucessor de Carlos V, deixa definitivamente os Países Baixos depois de lá ter residido durante alguns anos. Para seu lugar nomeia a sua meia-irmã Margarida de Parma, como governadora-geral dos Países Baixos. Os flamengos exigem a retirada das tropas espanholas. Essa disputa fará o rei Felipe II enviar aos Países Baixos, em 1567, o Duque de Alba acompanhado de um exército. O “conselho dos distúrbios” instituído pelo Duque de Alba condena à morte oitocentos “agitadores” flamengos. Tal situação política terá muitos reflexos na obra de Bruegel. Em 1558 ele pinta A queda de Ícaro e, em 1562, A queda dos anjos rebeldes, O suicídio de Saul, Dois macacos. Em 1564 nasce seu primeiro filho e, em 1568 nasce o segundo, frutos do seu casamento com Mayken Coeck, filha de seu mestre. Em 1568, exatamente um ano após a chegada do Duque de Alba nos Países Baixos, Bruegel pinta A queda dos cegos, A pega sobre a forca, A perfídia do mundo, O provérbio do ladrão de ninhos, Os mendigos, A tempestade. Pieter Bruegel morre em 1569, provavelmente, aos 5 de setembro, por volta dos quarenta anos. É sepultado em Notre-Dame de la Chapelle, em Bruxelas.
Antuérpia, em grande expansão, tornara-se o novo centro econômico e financeiro do mundo ocidental, lugar de reunião de comerciantes dos diversos países. Os artistas e artesãos aproveitavam-se também desse movimento e dessa circulação monetária. Por volta de 1560, teriam trabalhado em Antuérpia trezentos e sessenta pintores. Tal florescimento das artes faz aumentar a concorrência entre os artistas e artesãos. Depois de sua viagem a Itália, foi em Antuérpia que Bruegel viveu de 1554 até 1562. Antuérpia, cidade comercial que em cinqüenta anos quase dobrou a sua população, contava com muitos estrangeiros que, evidentemente falavam outra língua e tinham costumes diferentes. A sua mudança para Bruxelas, em 1563 se dá em razão de seu casamento com Myken, que lá morava com a mãe viúva, muito talentosa pintora de aquarelas. Quando se casou, Bruegel já era famoso e recebia encomendas de ricos e poderosos de Antuérpia, Bruxelas e outras localidades dos Países Baixos.
A região em que ele vivia estava sob o domínio da Espanha e sofria com as lutas das novas religiões protestantes tentando ganhar espaço nos Países Baixos. Esses conflitos estão presentes na sua obra.
Uma de suas obras que oferece bastante material para filosofia estóica é a Paisagem com a queda de Ícaro (1558). Conforme conta o mito que os europeus conheciam por meio de um famoso livro de Ovídio, chamado Metamorfoses, Dédalo homem habilidoso, construira o labirinto para Minos, rei de Creta esconder para sempre o Minotauro, vergonha da união da sua mulher com um dos deuses e símbolo do seu poder tirânico. O labirinto deveria ser inexpugnável. Mas Teseu, com ajuda de Ariadne, filha de Minos, consegue matar o Minotauro. Dédalo, com isso, cai na desgraça do rei Minos que o manda prender numa torre. Tendo conseguido fugir da prisão, Dédalo sabia que teria que inventar alguma forma de fugir da ilha, cujas embarcações eram rigorosamente revistadas. Segundo o mito, Dédalo, pai de Ícaro, descobriu uma maneira de voar construindo asas de pena e de cera. Prontas as asas, Dédalo ensinou seu filho a voar, recomendando-lhe que permanecesse numa altura moderada, pois, voando muito baixo, a umidade emperraria suas asas e voando muito alto, o calor do sol as derreteria. Entusiasmado com o vôo que estava dando certo, Ícaro começou a elevar-se cada vez mais para alcançar o céu. A proximidade com o sol forte amoleceu a cera que prendia as penas e estas desprenderam-se. Lançando gritos em direção ao pai, Ícaro mergulhou para sempre nas águas profundas do mar que receberia o seu nome. Ovídio fala de um lavrador, um pastor e um pescador que presenciaram tal cena.
Num de seus mais belos quadros, A queda de Ícaro, Bruegel deixa o espectador num ponto alto para contemplar a paisagem e a cena narrada por Ovídio. No centro do quadro com cores em destaque, está o lavrador que cuidadosamente ara a terra. Na direção dele à beira do mar, está o pastor tranqüilamente apoiado em seu cajado, a cuidar de suas ovelhas. Na parte inferior do quadro à direita está o pescador concentrado na tentativa de pegar o seu peixe. Próximas ao pescador notam-se as pernas de Ícaro que mergulha no mar e as penas que o acompanham. Ícaro que queria ser tão grande, para Bruegel reduz-se a um par de pernas prestes a sumir nas águas do mar. No alto do quadro há a luz forte do sol que foi a causa de sua queda. Embora alguns pudessem interpretar que Bruegel estivesse querendo criticar a cegueira dos três personagens para a novidade que está acontecendo, fica mais evidente o seu propósito de mostrar como, estoicamente, o lavrador, o pastor e o pescador estão conformados com a sua situação. Eles não fizeram como Ícaro que, não tendo aceitado viver e voar no meio termo, pretendera ser mais do que era, sonhando e buscando as alturas. Todo aquele que se conforma e aceita a sua condição e a sua missão, pode não alcançar as alturas, mas também não será precipitado nas profundezas. Bruegel parece demonstrar também que o homem, como querem os estóicos, só é feliz numa perfeita integração com a natureza que o alimenta e lhe dá a vida. Toda a natureza parece estar representada neste quadro: a terra, o mar, as montanhas, o sol, o céu, as plantas e os animais. Como que a contradizer a sua tese principal, Bruegel, ao mostrar a queda do herói, aponta para o homem que, com o auxílio de uma nova ciência e uma nova técnica, no início do século XVI, seu tempo, conquista um novo mundo: são as caravelas que, com suas velas infladas, ganham o mar para as grandes navegações.
O quadro de Bruegel é a pintura de uma página de Sêneca, numa de suas Cartas a Lucílio:
Mostro aos outros o caminho reto que conheci tarde, depois de tanto vaguear. Assim proclamo: “evitai tudo o que agrada ao vulgo, o que o acaso proporciona. Detende-vos suspeitosos e temerosos diante de todo bem fortuito. Tanto as feras como os peixes deixam-se enganar por uma esperança que os deleite. Entendeis como dádivas essas ofertas da Fortuna? Ao contrário, são armadilhas. Quem quiser viver uma vida segura, evite, o mais que puder, essas iscas pelas quais somos enganados, e por isso infelicíssimos; pensando apanhá-las, por elas somos apanhados. Essa corrida nos impele para o precipício. O fim desta vida, que deseja sobressair, é a queda.
O estoicismo de Bruegel também se faz muito presente na sua Torre de Babel (1563). Ele teria buscado inspiração no capítulo 11 do livro do Gênesis, que narra a pretensão do rei Nimrod de construir uma torre que alcançasse os céus, talvez para fugir de um possível novo dilúvio. Conta a Bíblia que, diante da arrogância e da pretensão dos homens, Deus confundiu suas línguas para que não se entendessem mais. Foram dispersos pela face da terra e a torre restou inacabada. A torre de Bruegel, pintada à beira de um rio para que fosse possível o transporte de materiais pesados é, construída com as técnicas conhecidas na época do pintor. O rei que se faz cortejar pelos humildes operários que se ajoelham aos seus pés será confundido devido a sua presunção. Ao fundo existe uma cidade que é própria da época de Bruegel, representando talvez a cidade de Antuérpia habitada por povos de muitas línguas. É interessante notar que a torre parece não levar a lugar algum, nem servir para nada. Nessa obra estão presentes mais alguns princípios estóicos: a presunção e o orgulho não levam ao céu, como também queria Ícaro, mas à confusão e dispersão dos homens. Seu maior castigo é construir uma grande obra sem sentido.
Em O regresso dos rebanhos (1565), Bruegel não mostra os homens como senhores da natureza, mas como partes integrantes dela. Ele pinta os homens com as mesmas cores da paisagem e do rebanho. Na filosofia estóica, o homem é chamado a não revoltar-se contra a natureza, diante das dificuldades e dos sofrimentos da vida, mas a curvar-se e aceitar o seu destino, pois o universo é uma construção bela e sabiamente ordenada.
O homem deve integrar-se, pois, a essa natureza, seja no trabalho do campo, seja nos sofrimentos e tempestades da vida.
Como diz a música tão cara aos cristãos: “Se as águas do mar da vida quiserem de afogar, segura na mão de Deus e vai!”
Essa conformidade com o destino e a integração na natureza também estão presentes na obra A perfídia do mundo (1568), em que ele pinta um personagem em trajes de mendigo envolto num globo de vidro que corta a bolsa de um velho vestido com uma capa escura. Na parte inferior do quadro há uma epígrafe que diz: O mundo é tão pérfido que me visto de luto. Mas afinal de contas, é o mundo que engana o homem ou é o homem que engana o mundo? À frente do homem de capa escura estão alguns espinhos prontos para castigá-lo. No último plano, totalmente despreocupado em relação a essas questões, está o pastor a cuidar de seu rebanho, numa perfeita integração com a natureza.
Em A queda dos anjos rebeldes (1562), Bruegel mais uma vez usa sua arte para denunciar as conseqüências do orgulho, da desobediência e da ganância. Expulsos da grande luz que ocupa a parte superior do quadro, os anjos rebeldes são transformados em monstros, corpos nus, híbridos e deformados. Próximos da luz estão os anjos bons, que expulsam os rebeldes que se amontoam na escuridão. É uma pintura que simboliza a passagem bíblica da expulsão dos anjos desobedientes do paraíso. Todo aquele que não se conformar com a sua condição e quiser ser igual a Deus cairá como Ícaro na desgraça total. É um princípio estóico, mas é também um ensinamento da tradição judaico-cristã.
Além da conformação com o próprio destino, por entendê-lo integrado na sábia construção do universo, o homem deve estar sempre pronto também para não ter medo do sofrimento e da morte. Bruegel dá vida a esse princípio estóico pintando os ditados populares do seu tempo: Cagar e dançar sob a forca. Nos Países Baixos, sob o domínio despótico do Duque de Alba, que já executara tantos conterrâneos seus, ao pintar personagens dançando alegremente sob a forca, Bruegel quer demonstrar a ausência do medo; outro personagem, no canto inferior esquerdo do quadro, dá vida ao ditado “cagar sob a forca”, que significa não temer as autoridades nem ligar para a morte. Estas cenas são envolvidas mais uma vez pelas paisagens de Bruegel. Há um vale com um rio e terras férteis, uma aldeia onde as pessoas levam as suas vidas naturalmente, parecendo também totalmente conformadas com o seu destino.
Motivado pela arte de Bruegel, por estes e por tantos outros quadros saídos do seu genial pincel, o estudante poderá ser convidado a entrar no mundo da filosofia: mundo de idéias, de provocações e questionamentos, que quase nunca encontram respostas, mas servem para auxiliar na elaboração de novas perguntas. O nosso olhar sobre Bruegel e sua obra levou-nos aos princípios da filosofia do Pórtico, o estoicismo de Zenão de Cício, que chegou em Atenas no final do século IV a.C., e de seus seguidores Crisipo, na Grécia e os romanos Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio. Na obra de Bruegel estão muito presentes as idéias estóicas de finalismo e providência, fado ou destino: se todas as coisas sem exceção são produzidas por um princípio divino imanente, que é o Logos, então tudo passa a ser rigorosa e profundamente racional. Tudo é bom e acontece como deve ser, se tudo for entendido como parte de um universo que lhe dá sentido. Se o todo, em si, é perfeito, as coisas singulares, consideradas em si imperfeitas, encontram a sua perfeição no quadro do todo. No mesmo sentido, a Providência imanente dos estóicos é vista como “Fado” e como “Destino”. Se tudo está integrado num mesmo universo, e esse universo é racional, então tudo acontece por necessidade, mesmo o menor dos acontecimentos. Mergulhado nessa idéia, o estóico Cleanto escrevia:
Guia-me, ó Júpiter, e tu, Destino, ao fim, seja qual for, que vos agrada assinalar-me. Seguirei imediatamente, pois se me atraso, por ser vil, mesmo assim deverei alcançar-vos.
É muito conhecido o exemplo dado pelos estóicos: um cão, amarrado a um carro, se o seguir correndo atrás, chegará ao destino com menor sofrimento; se não correr atrás, será arrastado pelo carro, chegando ao destino do mesmo modo, só que com mais sofrimento. O mesmo ocorre com os homens: aqueles que não quiserem seguir o Destino, de qualquer forma serão obrigados a chegar ao que lhes foi estabelecido pelo Fado. Sêneca, traduzindo um verso de Cleanto diz: “Ducunt volentem fata, nolentem trahunt”. Traduzindo, “o Destino conduz quem o aceita, e arrasta quem o rejeita”.
Lúcio Aneu Sêneca, nascido em Córdoba, na Espanha, no ano 4 a.C., entre o fim da era pagã e início da era cristã, foi um dos grandes representantes do estoicismo da Roma Imperial. Seu pai era Sêneca, o Retor, escritor de prestígio e que pode levar os seus filhos Novato, Mela e Lúcio Aneu, ainda crianças, para serem educados em Roma, nos tempos de Augusto. A vida cultural de Roma era muito intensa e Lúcio Aneu Sêneca, que daqui por diante será chamado apenas de Sêneca, iniciou-se logo cedo na filosofia estudando com os mestres do estoicismo. Diferente da filosofia grega, a filosofia romana estava mais ligada às questões práticas da vida, à moral, à política, aos ensinamentos sobre o “como viver e como morrer bem”. Sêneca, tendo vivido alguns anos em Alexandria, para cuidar de sua frágil saúde na casa de seu tio que era o governador, aproveitou a oportunidade para conhecer a maior capital intelectual da época. Em 31 d.C., volta a Roma restabelecido e retoma a carreira política, chegando ao Senado no ano de 33, obtendo rápida notoriedade, o que lhe causou a inveja do próprio imperador Calígula. Este, planejando assassiná-lo, foi, no entanto, assassinado antes. Provavelmente vítima das intrigas da corte de Cláudio, novo imperador, e da imperatriz Messalina, foi exilado na Córsega, onde experimenta o sofrimento do desconforto e da distância dos seus amigos e familiares durante quase uma década, aproveitando o tempo para dedicar-se intensamente ao estudo da filosofia estóica. Essa experiência legou-nos uma emocionante obra: Consolação à minha mãe Hélvia. Em 48, ele é beneficiado pelas reviravoltas na política romana e passa ser protegido da nova imperatriz Agripina. Sêneca tem aí o início da parte mais brilhante da sua carreira política e filosófica, chegando a ser, no ano 50, o preceptor do filho de Agripina, o jovem Domício que se tornará o imperador Nero, logo após o assassinato de Cláudio pela própria imperatriz. Para Sêneca chegou a ser criado um título especial, Amicus principis, sendo logo feito cônsul. Em 62, descontente com os rumos que tomava a política de Nero, Sêneca pede a permissão para se afastar da vida pública, dedicando-se, definitivamente à filosofia. Em 65, é acusado de estar implicado numa conspiração contra Nero que lhe ordena que se suicide. Termina aí, de forma bastante estóica, a vida de um homem de atitudes polêmicas, mas que nos deixou um grande legado na filosofia.
As pinturas de Bruegel parecem-se com as páginas de Sêneca. Contemplar um, ler o outro e com ambos aprender os princípios da escola do Pórtico, este é o objetivo principal deste trabalho.
A filosofia de Sêneca tem por objetivo conduzir à vida virtuosa. A virtude, para ele, consiste em viver de acordo com a razão universal. A filosofia é a ars vitae, a arte da vida centrada na moral, servindo como guia para a ação, refúgio e consolação, força no sofrimento e arte de morrer. Sêneca, ao tentar consolar sua mãe Hélvia, quando ele estava exilado na Córsega, deixa claro, o seu desprezo pela prisão e pela morte quando diz que o cárcere não é cárcere quando nele está um Sócrates .
Em Sobre a brevidade da vida, Sêneca propõe a Paulino, ocupante de um alto cargo no império, abandonar seu posto para dedicar-se inteiramente à filosofia. Talvez essa obra tenha sido escrita quando Sêneca já vivia no seu último retiro. Convencido de que a vida é breve, Sêneca escreve uma das páginas importantes do estoicismo:
Por que nos queixamos da Natureza? Ela mostrou-se benevolente: a vida, se souberes utilizá-la, é longa. Mas uma avareza insaciável apossa-se de um, de outro, uma laboriosa dedicação a atividades inúteis, um embriaga-se de vinho, outro entorpece-se na inatividade; a este uma ambição sempre dependente das opiniões alheias o esgota, um incontido desejo de comerciar leva aquele a percorrer todas as terras e todos os mares, na esperança de lucro; a paixão pelos assuntos militares atormenta alguns, sempre preocupados com os perigos alheios ou inquietos com os seus próprios; há os que, por servidão voluntária, se desgastam numa ingrata solicitude a seus superiores; a busca da beleza de um outro ou o cuidado com sua própria ocupa a muitos; a maioria, que não persegue nenhum objetivo fixo, é atirada a novos desígnios por uma vaga e inconstante leviandade, desgostando-se com isso... Vê aqueles cuja fortuna faz acorrer a multidão: são sufocados pelos seus bens. A quantos as riquezas não são um peso?... todos consomem mutuamente suas vidas.
Na mesma obra, Sêneca ainda diz que é preciso aprender a viver por toda a vida, e, por mais que cause espanto, a vida toda é um aprender a morrer. Sêneca ensina a Paulino que o verdadeiro ócio só existe para aqueles que são disponíveis para a sabedoria. Sêneca critica aqueles que desgastam a sua vida por um bom epitáfio.
Em Cartas a Lucílio, o último escrito conhecido de Sêneca, redigido entre os anos 63 e 64, ele produz um verdadeiro manual prático do estoicismo, uma espécie de “curso de sabedoria aplicada”. Sêneca aconselha a Lucílio que, para viver bem e chegar tranqüilo na morte, é preciso despojar-se de todos os vícios que o impedem, como faz o capitão do navio, ao livrar-se da bagagem para evitar o naufrágio. Semelhante ao Sermão da Montanha, em que os pobres são exaltados, Sêneca convida Lucílio a perder o medo da pobreza, que não é um mal. Segundo ele, basta comparar a fisionomia do pobre e do rico: o pobre ri com mais freqüência e de maneira mais espontânea. Sua tese fica mais forte quando diz:
Não é o dinheiro que te faz igual a um deus, pois deus nada tem. Nem a toga pretexta; ele não a usa. Nem a fama, nem a ostentação, nem a difusão do teu nome através dos povos; ninguém conhece a deus, muitos fazem dele um mau juízo, e impunemente. O séqüito de escravos que conduz a tua liteira pelas ruas das cidades pátrias ou estrangeiras não te ajudará; pois é aquele deus supremo e poderosíssimo que carrega todas as coisas. Nem mesmo a beleza e a força poderão te fazer feliz; nada disso resiste à velhice. Deve-se procurar o que não se muda de um dia para o outro naquele ao qual não se pode impedir. O que é afinal? É a alma, mas quando é reta, boa, nobre.
O homem conquista a liberdade em vida tirando a canga do próprio pescoço, desprezando os prazeres, deixando de lado a riqueza, abandonando o ouro e a prata, salários da nossa servidão voluntária. Mas a grande liberdade, para Sêneca, é conseguida com a morte, saída e solução final para todo sofrimento. Todos vivem e todos morrem, inclusive os animais: o verdadeiramente grande é morrer nobremente, sabiamente, fortemente. A vida é como um drama: não importa o quanto durou, mas como se representou e como dela se saiu. Sêneca, embora não estando muito certo em relação à transcendência, propõe que se viva em conformidade com aquilo que o Destino reservou, numa harmonia com o universo:
“E agora”, diz o sábio, “a esperança de um caminho que me está aberto em direção aos deuses não me faz partir com mais coragem. Mereci, sem dúvida, ser introduzido em sua morada e de fato já estive na companhia deles; para cima é que se eleva meu pensamento e seus pensamentos chegaram a mim. Mas suponha que eu estivesse aniquilado, suponha que nada resta após a morte; minha coragem continua igual, mesmo se ao abandonar o mundo eu não for para lugar nenhum”.
Coerente com os princípios do estoicismo em relação ao destino, o que importa para Sêneca é o viver bem, na virtude. Virtude aqui significa a conformidade com aquilo que a vida lhe deu: um pobre ou um rico conformados serão felizes, um pobre ou um rico inconformados, serão ambos infelizes.
Tu te indignas e te queixas! Não percebes que todo mal provém não daquilo que te acontece, mas de tua indignação e queixas; se queres que te diga, a meus olhos não há miséria para um homem a não ser a de considerar que algo que está na natureza das coisas possa ser miserável. Não suportarei nem a mim mesmo no dia em que eu achar algo insuportável... sempre que a vida me parece adversa e cruel, eis a regra que eu me fiz: em vez de obedecer a Deus, estou com ele. Sigo-o porque quero, e não porque devo segui-lo... Dize, a cada vez que acontece algo contrário do que esperavas: “os deuses julgaram melhor que eu”.
Para Sêneca a parte principal do homem é a virtude. A ela acrescentamos uma carne inútil e fraca, que só sabe devorar a comida. A busca do prazer leva à infelicidade.
O prazer é uma espécie de dissolvente; esmorece todas as forças... o bem não reside nem na comida, nem no passeio, nem na roupa, mas na maneira pela qual me proponho servir-me deles, respeitando em cada ocasião a medida racional.
Em De vita beata, escrito por volta de 57, dedicado a seu irmão mais velho Novatus, aqui chamado Gálio, Sêneca faz um resumo da vida feliz sob os princípios do estoicismo:
Verei a morte com o mesmo semblante com que ouço falar dela. Eu me sujeitarei aos trabalhos de qualquer espécie, sustentando o corpo com a alma. Desprezarei igualmente as riquezas presentes e ausentes, nem serei mais triste se estiverem em outra parte, nem mais altivo se elas me cercarem com o seu brilho. Não serei sensível à sorte quando se aproxima ou se afasta. Considerarei todas as terras como sendo minhas e as minhas como de todos. Viverei como se tivesse nascido para os outros e agradecerei por isso à natureza... Não guardarei avaramente nem desperdiçarei com prodigalidade tudo o que eu tiver... Agirei sozinho como se todos me olhassem. O limite que porei à comida e à bebida será a satisfação dos desejos naturais, e não encher e esvaziar o ventre... E quando a natureza me pedir de volta o meu espírito ou a razão o lançar para fora de mim, partirei dando-me o testemunho de ter amado a boa consciência, as boas tendências, que a liberdade de ninguém foi diminuída por mim e muito menos a minha; quem se propuser fazer essas coisas, ou quiser ou tentar, empreenderá o caminho para os deuses...
No dia em que termino este artigo, o técnico da seleção brasileira feminina de futebol, ao comentar a derrota pela medalha de ouro olímpico diz: Deus quis assim, precisamos nos conformar, ter paciência...
Então, ao final desta apresentação, poderíamos nos perguntar: “Falar de Bruegel e de Sêneca não significa difundir o conformismo com nossa situação, seja ela na integração perfeita com a natureza, seja na paciência para agüentar as tempestades que a vida nos apresenta?”. Penso que não. Exatamente pelo fato de se tomar consciência de que o discurso conformista foi burilado historicamente e que o estoicismo aliado ao cristianismo foram os seus arautos, é que podemos questionar todo o discurso da fatalidade ou da providência e assumir a vida nas próprias mãos, acreditando que a utopia é fruto de construção humana.
A recuperação da estética no ensino e na aprendizagem da filosofia tem como um dos seus objetivos resgatá-la da condição de apêndice dos tratados filosóficos e dos programas de ensino da filosofia. Espero que a iniciativa deste trabalho e desta conferência tenha alcançado algum objetivo nessa direção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_______. Sobre a tranqüilidade da alma; Sobre o ócio. Trad. José Rodrigues Seabra Filho. São Paulo: Nova Alexandria, 1994